Por Augustus Nicodemus Lopes
*Embora a situação e o destinatário dessa carta sejam fictícios, ela se baseia em fatos reais.
Meu caro Fernando,
Fiquei muito feliz em saber que você vem
se fortalecendo mais e mais nas doutrinas da Reforma. Lembro-me bem das
suas interrogações e de seus conflitos quando você começou a ler Martin
Lloyd-Jones, Spurgeon e outros autores reformados e se deparou com a
visão reformada de mundo e com as doutrinas da soberania de Deus, da
graça absoluta e da nossa profunda depravação. Quantas perguntas e
quantas interrogações! Pelo que entendi da sua carta, esse período
inicial de conflito interior e de “arrumação” da mente já passou e agora
você enfrenta uma outra fase, que é o antagonismo de colegas pastores
da sua denominação e de membros da sua igreja para com o novo conteúdo
das suas pregações e do seu ensino.
Você me perguntou se temos espaço em
nossa igreja para pastores como você, que é pentecostal e que
recentemente encontrou as doutrinas reformadas. Estou vendo essa
possibilidade com alguns outros colegas pastores, mas eu pessoalmente
não creio que a solução seria você sair de sua igreja e passar para uma
reformada. Creio que você deveria tentar ficar onde está o máximo de
tempo que puder. Os reformadores, como Lutero, a princípio não
pretendiam sair da Igreja Católica, mas ficar e reformá-la de dentro
para fora. Somente após algum tempo é que ficou claro que isso era
impossível. No caso de Lutero, o papa se encarregou de expulsá-lo com a
excomunhão. Seu caso é diferente, pois é um absurdo comparar a situação
de um reformado dentro da Igreja Católica com a situação de um reformado
dentro de uma igreja pentecostal. Portanto, minha sugestão é que você
permaneça o máximo que puder, só saia se for obrigado a isso. Deixe-me
dar alguns conselhos nessa direção.
1. Mantenha sempre em mente que apesar
das diferenças que existem em doutrinas e práticas (nem sempre
discutidas de maneira cristã), os reformados no Brasil sempre
reconheceram os pentecostais históricos como genuínos irmãos em Cristo.
Nós chegamos ao Brasil primeiro. Vocês vieram depois. É verdade que a
princípio houve relutância em reconhecê-los como evangélicos por causa
da estranheza com as práticas e doutrinas pentecostais, mas apesar
delas, eventualmente vieram a ser reconhecidos como irmãos dentro da
fraternidade evangélica.
2. Existem muitos pontos de convergência
entre os reformados e os pentecostais. Além dos pontos fundamentais
contidos, por exemplo, no Credo Apostólico, compartilhamos com eles
ainda o apreço pelas Escrituras, o reconhecimento da necessidade de uma
vida santa, a busca da glória de Deus, o desejo de um legítimo
avivamento espiritual e o zelo pela doutrina. Nesses pontos e em outros,
pentecostais e reformados sempre se alinharam contra liberais e
libertinos. Tente se concentrar nesses pontos comuns nas suas pregações e
no seu ensino.
3. Enquanto permanecer em sua igreja,
responda sempre com mansidão e humildade aos que questionarem as “novas
doutrinas” que você agora professa. Diga que as doutrinas ensinadas
pelos reformados são muito mais antigas que a própria Reforma e que
remontam ao ensino de Jesus e dos apóstolos. Elas têm sido adotadas e
ensinadas por pastores e pregadores de todos os continentes e de muitas
denominações diferentes. Elas serviram de base para o surgimento da
democracia, da visão social, das universidades e da ciência moderna, e
vêm abençoando a vida de milhões de pessoas ao redor do mundo.
Naturalmente, o que vai realmente fazer a diferença em sua resposta é
sua habilidade de mostrar biblicamente que você não está abraçando
nenhuma heresia ou doutrina nova. Para isso, é necessário que você
estude as Escrituras e que se familiarize com sua mensagem,
especialmente com as passagens e porções que tratam mais diretamente das
doutrinas características da Reforma.
4. Evite dar a falsa impressão de que
ser reformado é cantar somente salmos sem instrumentos musicais, não ter
corais nem grupos de louvor, proibir as mulheres de orar em público e
não levantar as mãos ou bater palmas no culto. Concentre-se nos pontos
essenciais, como a soberania de Deus, a sua graça absoluta na salvação
de pecadores, a depravação total e a inabilidade do homem voltar-se para
Deus por si mesmo, a necessidade de conversão e arrependimento e a
centralidade das Escrituras na experiência cristã.
5. Quando chegar ao tema do livre
arbítrio, escolha com cuidado as suas palavras. Você sabe que a posição
reformada clássica é de que a soberania de Deus e a responsabilidade
humana são duas verdades igualmente ensinadas na Bíblia, muito embora
não saibamos como elas se reconciliam logicamente. Deixe claro que você
em momento algum está anulando a responsabilidade do homem para com as
decisões que ele toma, e que, quando ele toma essas decisões, ele as
toma porque quer tomá-las. Ele é, portanto, responsável pelo que faz e
pelo que escolhe, mesmo que, ao final, o plano de Deus sempre
prevalecerá e será realizado. Não tente resolver o mistério dessa
equação. Seja humilde o suficiente para dizer que você reconhece o
aparente paradoxo dessa posição e que não consegue eliminar nenhum dos
seus dois pontos. Mantê-los juntos em permanente tensão é o caminho da
Reforma, e um caminho que muitos pentecostais vão entender e apreciar. O
que eles receiam é que se acabe por eliminar a responsabilidade do
homem e reduzi-lo a um mero autômato. Deixe claro que não é isso que os
reformados defendem.
6. Creio que será muito útil você estar
familiarizado com as experiências espirituais vividas por John Flavel,
Lloyd-Jones, Jonathan Edwards, David Brainerd, George Whitefield e
muitos outros reformados. Os reformados e particularmente os puritanos
deram grande ênfase à religião experimental, isto é, ao fato de que os
cristãos deveriam ter profundas experiências com Deus. Nossos irmãos
pentecostais apreciam essa ênfase, pois o surgimento do pentecostalismo,
entre outros fatores, foi uma reação contra a frieza e a formalidade de
muitas igrejas históricas do início do século XX nos Estados Unidos e
Europa.
7. Tente ainda mostrar que as doutrinas
da graça, aquelas da Reforma, são as que mais tendem a glorificar a
Deus, visto que exaltam a sua soberania e humilham o homem, colocando-o
no devido lugar. Todo cristão genuíno tem anseios de dar a glória a Deus
e de vê-lo exaltado. Nossos irmãos pentecostais buscam a glória de
Deus, e quando entendem que as doutrinas da graça tendem a exaltá-lo
mais que outras, passam a ter uma atitude de reflexão e abertura para
com elas.
8. Um outro conselho. Pregue a Palavra,
exponha as Escrituras com fidelidade. Ao fazer isso, você estará
pregando as grandes doutrinas da graça em vez de pregar sobre a Reforma.
Evite citar autores reformados o tempo todo. Muitos pregadores
reformados estragaram seu ministério porque dão a impressão que conhecem
Lutero, Calvino, Spurgeon e os puritanos mais do que o apóstolo Paulo,
pela quantidade de vezes que ficam citando autores reformados em seus
sermões. Evite clichés evangélicos e reformados. Pregue a Palavra e
deixe que seus ouvintes concluam que as doutrinas reformadas são, na
realidade, bíblicas.
9. Não estou dizendo que você deve
“esconder o jogo” para evitar ser colocado para fora de sua igreja. Faz
parte da integridade e da honestidade cristãs assumirmos o que pensamos.
Assuma sua posição, mas de forma inteligente e sábia, de forma que
muitos entendam a mudança que ocorreu em você. Por outro lado, evite a
síndrome de mártir. Eu pessoalmente detesto essa atitude que por vezes
alguns reformados adotam quando estão em minoria e estão sofrendo
resistência. Se ao final não tiver jeito e você tiver mesmo de sair da
sua igreja, saia com dignidade, não saia atirando nem acusando as
pessoas.
10. Não veja as perseguições que você
tem sofrido dentro de sua igreja como algo pessoal, mas como a reação de
irmãos sinceros do outro lado de um conflito que já dura séculos dentro
da igreja cristã, que é aquele entre
semipelagianos-erasmianos-arminianos, de um lado, e
agostinianos-calvinistas-puritanos, de outro. Lembre que em ambos os
lados há crentes verdadeiros e sinceros.
Por fim, existem já no Brasil várias
igrejas pentecostais-reformadas, pequenas, é verdade, ainda nascentes.
Mas, mesmo não sendo pentecostal, profetizo que esse movimento pode
crescer muito no Brasil. Muitas igrejas históricas já são pós-reformadas
e é muito triste ver o esquecimento das suas heranças e como vai
ficando cada vez mais difícil um retorno verdadeiro. Quem sabe os
pentecostais não estejam predestinados a avançar bastante a teologia da
Reforma no Brasil?
Fique em paz. Um abraço do seu irmão e amigo,
Augustus
***
Fonte: O Tempora! O Mores! Divulgação: Massoreticos
Parabéns pelo blog. Mensagens edificantes. Que a potente mão do Senhor esteja contigo !!!
ResponderExcluirEu agradeço as sua palavras, sei que está vindo de um homem que medita na Palavra de Deus. Como o título do seu blog, assim, voltemos as raízes.
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